CASO KISS "Mais do que o destino de Mauro, de Elissandro, de Marcelo ou de Luciano, o que está em jogo aqui é o Tribunal do Júri e seus cânones": a sustentação oral da defesa no julgamento
Confira, abaixo, a íntegra da sustentação oral do advogado Bruno Seligman de Menezes, sócio do escritório Cipriani, Seligman de Menezes e Puerari, em sessão de julgamento dos recursos das defesas dos condenados no julgamento do Caso Kiss.
“Ao Tribunal do Júri, ponto de partida, escola de democracia, o povo na Justiça, onde aprendi que o Direito deve servir à vida.”
(Evandro Lins e Silva)
O Tribunal do Júri é uma instituição bicentenária.
Antes mesmo da Independência do Brasil, já havia sido criado por ato do então Princípe Regente, Dom Pedro I, para julgar, à época, crimes de imprensa.
Após algumas modificações em sua competência e formatação, com a primeira Constituição da República, o instituto foi erigido a garantia do cidadão brasileiro. Entre idas e vindas, nas Constituições dos conturbados anos 30, foi deslocado ao capítulo do Poder Judiciário, sendo que em 1946 o Tribunal do Júri retornou ao rol das garantias individuais, assegurando a plenitude de defesa a seus acusados.
Plenitude de defesa é algo muito mais profundo do que amplitude de defesa. O fato de ser julgado por leigos que não fundamentam suas decisões preocupou o constituinte, exigindo do Estado a observância a uma defesa não apenas formal, mas sobretudo material.
Com isso, dizer que o Tribunal do Júri é uma garantia individual, significa dizer que é direito do cidadão ser julgado por seus pares, e um dever da sociedade em fazê-lo. Jamais o contrário.
O Tribunal do Júri, portanto, deve ser um foro tão sagrado, a ponto de que o acusado tenha, dentro dele, mais garantias do que teria em qualquer outro processo criminal.
E, definitivamente, não foi o que houve no processo da Boate Kiss.
No presente caso, acusação e Juízo agiram para suprimir garantias, notadamente para minimizar a plenitude de defesa dos acusados, o que se evidencia ao longo de diversas nulidades apontadas, as quais priorizo três, em razão da exiguidade do tempo.
A primeira apontada concerne à exploração do silêncio dos réus, em manifesta violação de proibição expressa da lei, por parte do assistente à acusação, que criou indevida suposição aos jurados, ao dizer que “os acusados tiveram oito anos para falar aos pais e hoje não quiseram responder às perguntas que eu ia fazer”.
A lei processual é clara, em seu artigo 478, inciso II, ao afirmar que as partes não poderão fazer menção ao silêncio dos réus, sob pena de nulidade.
Ora, a acusação – por seu assistente – fez menção ao silêncio, e os réus encontram-se condenados. O prejuízo é evidente, razão pela qual deve ser pronunciada a nulidade.
A segunda nulidade diz respeito ao uso, por parte do Ministério Público, nos debates, de tese acusatória inovadora.
Durante todo o processo, o Ministério Público imputou a Mauro Hoffmann condutas comissivas (implantou espuma, contratou show, manteve a casa superlotada).
Entretanto, quando confrontado, alegou que se tratava da teoria do domínio do fato e da cegueira deliberada. Primeiro, que em momento algum qualquer uma das duas teorias foi apontada na inicial acusatória. A primeira, teoria alemã que viabiliza a distinção entre autores e partícipes; e a segunda, teoria surgida no direito anglo-saxão, inicialmente vista na Inglaterra, mas consolidada, no final do século XIX, no caso Spurr v. United States. Essa, em especial, é uma teoria que nitidamente se aplica a condutas omissivas.
Ou, como disse o Promotor de Justiça, em Plenário, “é quando alguém que tem a obrigação de saber, fecha os olhos”.
Com a inovação acusatória, fere-se o princípio da correlação ou da congruência.
A terceira nulidade é imputada à conduta do magistrado. Ao elaborar o quesito que poderia desclassificar a conduta, as defesas requereram fosse descrita a expressão que constou tanto da denúncia quanto da pronúncia: indiferença e desprezo pela vida.
O magistrado indeferiu, fazendo constar apenas a expressão assumir o risco de produzir o resultado.
Segundo constou em suas razões, atender ao pedido das defesas, poderia embaraçar a compreensão dos jurados.
Trata-se de uma contradição em termos. De que forma a explicação em excesso poderia confundir os jurados? Seria rigorosamente o contrário.
Assumir o risco de produzir o resultado é uma expressão que foi vulgarizada com o uso demasiado do dolo eventual, mas sem a sua plena compreensão. Dizer que isso representaria a indiferença e o desprezo pela vida atenderia não apenas o que dizem a acusação e a decisão de pronúncia, como também proporcionaria uma reflexão adicional antes de uma decisão de tamanha importância.
Será que teriam os réus, de fato, indiferença e desprezo pela vida?
De qualquer modo, a decisão viola a literalidade do parágrafo único do artigo 482 do Código de Processo Penal.
Finalmente, na eventualidade de não ser anulado o julgamento, algumas breves considerações a respeito da dosimetria da pena.
A decisão considerou em desfavor do apelante cinco circunstâncias judiciais.
Afora as consequências do fato, com o que a defesa não discorda, as outras quatro são absolutamente descabidas.
Primeiro, porque para considerar a culpabilidade, disse o magistrado que o apelante teria dolo eventual intenso. Ora, o dolo eventual flerta com a culpa consciente, de modo que é absolutamente contraditório falar em um grau excessivo do referido elemento subjetivo. Ademais, a valoração representa um equívoco dogmático seriíssimo. A intensidade de dolo e os graus de culpa eram elementos que constavam do antigo artigo 42 do Código Penal, anteriormente à reforma penal de 1984.
É dizer, atende a um modelo causalista, o qual foi abandonado há quase quarenta anos.
Sobre os motivos e circunstâncias do crime, o magistrado acabou por incluir como circunstâncias judiciais elementos que foram expressamente retirados da imputação, quando figuravam como qualificadoras.
A decisão que afastou as qualificadoras, quando do julgamento do Recurso em Sentido Estrito não foi atacada por qualquer recurso.
Inseri-las, ainda que sob outra rubrica, é tentativa indevida e inidônea de burlar a coisa julgada material que lhe assegura imutabilidade.
Finalmente, a pena foi ainda aumentada pela defraudação da confiança, desdobramento do comportamento da vítima.
O comportamento da vítima, conforme doutrina, jurisprudência, bem como pelo próprio Manual Prático de Decisões Penais, da Escola Nacional de Aperfeiçoamento de Magistrados são uníssonos ao afirmar que a referida vetorial jamais teria o condão de aumentar a pena do condenado; apenas o contrário.
Excelências, mais do que o destino de Mauro, de Elissandro, de Marcelo ou de Luciano, o que está em jogo aqui é o Tribunal do Júri e seus cânones.
Em nome deles, desta instituição constitucional e bicentenária, é que pede a defesa a anulação do julgamento a fim de que o apelante possa, enfim, ser julgado dentro das regras do jogo. Subsidiariamente, a redução da pena.
Muito obrigado!